O
menino levantou de sua cama de palha que dividia com seus irmãos, tinha a pele
clara, com grandes olhos escuros, seu cabelo liso caia sobre a testa. Percorreu
a pequena casa esfumaçada e escura, lavou o rosto com um pouco de água de um
jarro. Ao passar as mãos pelo pescoço, percebeu um calombo, assustado procurou
por um espelho. Achou um pedaço quebrado que estava em cima de mesa de madeira
que não tinha uma forma definida e que era sustentada por dois cavaletes.
Quando olhou no espelho, muito se assustou com um calombo que crescia
rapidamente, com desespero, o garoto deixou o espelho cair e se quebrar, a
saliência continuava crescendo como se fosse uma bolha de ar. (continue lendo)
Tentou
desesperadamente acordar seus pais e irmãos, mas todos também tinham calombos
por várias partes do corpo, pareciam mortos. Os calombos percorriam toda a pele
até estourarem como um líquido em ebulição. O garoto passou a mão no pescoço
mais uma vez, a saliência em pouco tempo havia alcançado o tamanho entre um
limão e uma laranja. Seus olhos se encheram de lágrimas e seus gritos tomaram
conta do cômodo de taipa, mas ninguém o ouvia. Com um fraco barulho, a bolha de
pele e sangue negro explodiu e molhou todo o ombro direito do menino, moscas
começaram a sair pelo buraco no pescoço, o sangue escorria até os pés e
manchava o chão. O jovem começou a sentir calafrios e dos cantos da boca
escorriam gotas de sangue.
Alguém
bateu na porta rústica de madeira, molhada com seu sangue, o garoto correu para
abrir e trombou em um banquinho sem encosto. Enquanto caído, as batidas na
porta continuavam incessantemente. Engatinhando, ensangüentado e extremamente
aterrorizado, o menino abriu a porta de madeira que fez um barulho agudo. O
terreno escuro do lado de fora estava repleto de cadáveres fétidos, alguns
desfigurados com bolhas de pele e sangue, outros já com parte deteriorada
mostrando parte dos ossos e vísceras. Os cadáveres estavam jogados um em cima
dos outros aleatoriamente como montes de palha. Chuva e relâmpagos tomaram
espaço no céu, o brilho dos relâmpagos deixava a cena mais assustado na medida
em que evidenciava alguns corpos levantando.
A
chuva aumentou consideravelmente, os relâmpagos eram ensurdecedores. O menino
fechou a porta e se se encostou à mesma, mas logo caiu do lado de fora da casa,
passando entre a porta como se fosse um fantasma. Quando se virou para os
corpos, todos estavam de pé, alguns sem olhos e avançavam na direção do garoto
que tentava correr, mas suas pernas não se movimentavam. De repente, dois
braços saíram da terra e puxaram as suas pernas que se quebraram. Mais bolhas
tomaram conta do rosto do menino ao mesmo em que um cadáver pulou em sua
direção.
Em
um solavanco, Giovanni levantou-se assustado da cama, onde ficou sentado por um
tempo com as mãos apoiadas no colchão, com os olhos parados observando o chão
de piso bege, aquele fora mais um sonho terrível. O homem tinha setenta e nove
anos, era um médico renomado. Embora tivesse tal idade, o que era raro naquela
época, mantinha uma boa alimentação, o que dava a ele, melhor condição de vida.
As rugas eram parte integrante de seu rosto, ele vestia uma túnica branca e de
seda, muito leve e fina. A barba era branca e caia sobre o peito, assim como os
cabelos não tão longos e brancos chegavam aos ombros. Passou as mãos enrugadas
no pescoço, não havia bolha alguma.
Aquela
não era a sua casa em Avignon, mas sim um hotel em Saint-Denis, nove
quilômetros ao norte de Paris. O quarto tinha uma bonita decoração, a cama
feita de cedro da Fenícia fazia uma boa combinação com o lençol vermelho que
provavelmente era comprado nos mercados da cidade. Havia duas janelas embaçadas
no quarto, dava visão à cidade que crescia com várias igrejas, aos telhados
escuros com chaminés que expeliam fumaças e ruelas de pedra em forma de
labirinto. A leste poder-se-ia contemplar a imponente Basílica de Saint-Denis,
fundada durante o século VII, em um belo estilo gótico. As paredes claras davam
destaque à lareira que ainda continha algumas brasas. No chão, alguns tapetes
vermelhos e dourados, vindos do oriente ornamentavam o ambiente. Na parte havia
alguns quadros de madonas e de cavaleiros, com molduras douradas.
Giovanni
se levantou com pouco esforço, foi até uma pia com água, no canto do quarto e
lavou o rosto, ajeito os cabelos desgrenhados. Olhou no espelho e novamente
verificou o pescoço que se mantinha saudável, embora algumas veias e rugas
estivessem bem a mostra. As olheiras destacavam seu velho rosto. O velho foi
até uma das prateleiras de madeira escura, onde pegou uma túnica de seda na cor
azul clara com babados dourados, ele não era muito alto. Sem nenhuma dificuldade,
colocou um sapato pontiagudo de couro de bode em seus pés com joanetes.
Pegou
seus óculos sem hastes em cima da escrivaninha que tinha alguns papéis bem
organizados e cheios de anotações. Apertou ao nariz com um regulador. Ao abrir
a porta, o silencio do seu quarto se desfizera devido a alguns continuas
conversas que vinha de um salão. Fechou a porta e percorreu um corredor com um
piso escuro e uma parede sem brilho, mas com alguns quadros emoldurados. Após
andar por pelo menos uns dez metros e passar por algumas portas, desceu por uma
curta escada de madeira que seguia por mais um corredor.
Dali
deu para uma sala de alimentação, com várias mesas e bancos de madeira, sem
encostos. Em cima das mesas havia copos de madeira e pratos de barro. Na sala a
presença de muitas pessoas dava um ar de ânimo naquela época de guerras. Homens
de túnicas e mulheres com vestidos longos comiam pernis de porco, uma espécie
de papa de cereais e pão de cereais mais grosseiros. Conversavam enquanto a luz
rarefeita entrava pelas janelas e portas do estabelecimento, enquanto alguns
homens se embebedavam com vinhos e cervejas do norte Por vezes, um deles
aproveitava de uma ou de outra mulher que servia as mesas, dando tapas nas
nádegas, fazendo com que ela desse um pulo.
Embora
aquela região fosse francesa, dentro do estabelecimento ouvia-se o sussurrar de
várias línguas, pessoas de todos os cantos do mundo estavam ali, desde
holandeses de Flandres até os orientais com suas finas roupas de seda e
ornamentos em marfim. A maioria vinha a negócios, pois aquela era uma região
estratégica e próspera ao comércio.
Mulheres
com vestidos justos, compridos e de cores fracas, tendo um laço sobre a cabeça,
serviam a todos, todas elas eram mulheres de camponeses que tentavam a vida na
cidade. As viúvas também faziam parte desse tipo de emprego, quando não o
procuravam nas vielas e becos escuros.
Logo
ao lado dos bancos e mesas havia uma cozinha, as frituras eram preparadas em
banha quente, as carnes eram conservadas também em banha sólida e cozidas com
especiarias, como cravos e pimentas. Até serem servidas para todas aquelas
pessoas que comiam com as mãos e em muitas ocasiões limpavam os resquícios
perdidos no rosto em suas próprias roupas.
Giovanni
atravessou o salão cheio de gente, chegou até a larga porta e deu de frente
para a estreita rua de pedras. De frente ao restaurante, havia um mercado de
couros, com sapatos de bode, o que era mais usado nessas regiões. A rua nunca
estava vazia a não ser a noite, as mais diversas pessoas perambulavam por ali,
desde mendigos até carros carregados de mercadorias e que eram puxados por
homens pobres. Os homens que por ali passavam, em sua maioria usavam uma
espécie de colete sobrepostos a camisas de manga cumprida que iam até a
cintura, com ceroulas justas e compridas. Muitos usavam o famoso sapato de
couro de bode e pontiagudo, mas também poder-se-ia ver os raros sapatos
marroquinas que iam do peito do pé até o joelho. Como detalhes, homens usavam
barba e capirote, um tipo de chapéu em cone.
As
mais variadas mulheres passam pela rua, aquela era uma época de tendências que
deixassem os vestidos mais proporcionais e volumosos, com o uso corselete
amarrados nas costas e que por vezes deixava feridas, mas que em troca dava uma
bela silhueta com valorização dos seios. A maioria usava o cabelo amarrado e
tampado com bordado ou uma rede lateral.
O
velho seguiu a direita da rua estreita, os mendigos se amontoavam junto aos
fétidos lixos nas calçadas, com um olhar abatido um mendigo puxou a túnica de
Giovanni que parou e lhe jogou alguns trocados. Passou por algumas casas
simples, com apenas uma porta rústica de madeira, muitas pessoas passavam por
eles, crianças, jovens, adultos e velhos. Os doentes, assim como mendigos,
estavam sempre jogados as margens, principalmente os leprosos, as crianças
sentiam pavor só de vê-los.
Logo
no final do quarteirão, a rua quebrava a esquerda, dando origem a uma ruela,
com poucos metros de largura, mas que se prolongava por grande extensão. A
ruela de pedra, com algumas áreas de barro, era cercada por casas de um e dois
andares, todas muito simples e enlodadas. Não era raro passar por uma casa de
prostituição disfarçada de mercado, as mulheres entravam e saiam toda hora, o
cheiro íntimo e extremamente forte era corriqueiro. O ambiente compartilhava
espaço com crianças pobres que brincavam de cavaleiros.
-
Seu idiota, eu sou melhor que você! – um menino louro gritava ao passar a
espada de madeira no pescoço do amigo de cabelos escuros.
-
Com certeza serei um melhor cavaleiro que você. – desafiou.
-
Pare de blefar, será apenas como Carlos, o Louco – todos sabiam sobre Rei
Carlos, o Louco, ele comandava a França, mas era louco, sofria surtos, como uma
síndrome do pânico, era uma verdadeira piada aos citadinos.
Bem
a frente, Giovanni parou em uma taberna lotada de homens, o fundo da taberna
dava para uma casa de prostituição cheia de meninas e mulheres. A taberna era
escura, um lugar onde homens se embebedavam e cediam ao prazer da carne. No
pouco tempo em que Giovanni ali ficou, saboreou o melhor vinho, que nem mesmo
chegava perto de custar um florim de ouro (200 denários = 3000 reais).
Ao
sair da taberna, já meio zonzo com a bebida, seguiu pela ruela até chegar a uma
pequena igreja, em Saint-Denis, havia muitas daquelas, passou direto por ela. A
igreja situava-se na esquina que dava em frente a praça abarrotada de pessoas
de todos os tipos. Ali era o lugar de se ganhar dinheiro jogando dados, fazendo
arte, assim como os artistas de ruas. As conversas eram colocadas em dia bem
ali na praça e o principal assunto que se falava era da derrota dos franceses
para os ingleses. As pessoas estavam inseguras e frustradas.
-
Os ingleses mataram sem piedade, ao norte, a metade do exército francês – dizia
um homem jogador sentado diante de uma mesinha de madeira.
-
Parece que estão marchando para o sul e que vão tomar todos os lugares – falou
o outro meio que apavorado enquanto limpava o nariz na manga da camisa.
Giovanni,
apesar da experiência, sentiu um aperto no peito, ficou apreensivo e inseguro,
continuou ouvindo o que os jogadores diziam, enquanto as pessoas que
transitavam trombavam em seu corpo.
-
Os ingleses foram tão impiedosos que arrancaram a cabeça do famoso Charles –
esse nome fez o médico ficar curioso.
-
Charles do quê? – indagou o médico.
-
Ah... Sei lá – disse o homem com um resto de sujeira do nariz na bochecha – um
tal de Albret.
O
coração de Giovanni acelerou, Charles I d’ Albret foi seu paciente há alguns
anos quando caiu do cavalo em uma caçada de cervos. Era um exímio líder e
combatente.
-
Estão marchando para o sul? – indagou novamente.
-
Sim, há rumores que estão vindo bem próximos a Saint-Denis – apesar de ser um
rumor, aquela informação assustara o médico, ele mal percebia que logo ali a
frente acontecia uma briga devido as jogatinas.
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